Orson Welles para Steven Soderbergh: curadores de Karlovy Vary no cinema “Kafkiano” de Hollywood
Quando se trata do celebrado escritor tcheco Franz Kafka, cineastas de todo o mundo há muito se inspiram em adaptar suas obras ou criar filmes decididamente “kafkianos”, repletos de angústia, alienação e absurdidade, características que tornaram o romancista uma das figuras mais proeminentes e distintas da literatura do século XX.
Agora, um século após sua morte, Kafka, nascido em Praga, será o tema de uma retrospectiva de filmes no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary, que incluirá títulos de Orson Welles, Martin Scorsese, Federico Fellini e Steven Soderbergh. “É incrível a forma como esse escritor [Kafka] conseguiu influenciar não apenas a literatura, mas também o cinema por tantos anos”, diz Lorenzo Esposito, co-curador da retrospectiva junto com o diretor artístico de Karlovy Vary, Karel Och, ao The Hollywood Reporter.
Clássicos e Adaptações Menos Conhecidas
A retrospectiva incluirá clássicos como “The Trial” (1962), de Orson Welles, que apresenta Anthony Perkins como o confuso burocrata Josef K.; “After Hours” (1985), uma comédia dramática kafkiana de Scorsese ambientada em Nova York; “Intervista” (Entrevista), de Fellini; “Kafka” (1991) de Soderbergh e sua reedição de 2021 “Mr. Kneff” — ambos estrelando Jeremy Irons como um homem de seguros e escritor — ao lado de adaptações menos conhecidas, como “Metamorphosis”, de Jan Němec, um filme de TV alemão.
Entendimento Único da Condição Humana
Para Esposito, o que diferenciava Kafka era seu entendimento único da condição humana e como viver no mundo moderno pode ser desafiador e absurdo. “No fim, o que é verdadeiramente perturbador em Kafka, e o que o aproxima de todos nós, não é apenas que ele entendia claramente a estrutura política e econômica do mundo em que vivemos, mas ele também entendia nossa impotência para mudá-la”, argumenta.
Conexão Profunda com Praga
Karel Och falou sobre a retrospectiva de Kafka de seu escritório em Praga, a poucos passos de onde o grande escritor tcheco viveu e trabalhou: “Estou sentado aqui a 200 metros de onde Kafka nasceu e a 400 metros de onde ele escreveu seus livros mais famosos. Então, o festival está muito conectado aonde Kafka vivia, andava, escrevia, passava tempo com sua família e amigos. Se não fizermos isso, quem fará?” explica Och.
Filme Dentro de um Filme
Esposito aponta um dos títulos da retrospectiva de KVIFF, “Intervista”(Entrevista) de Fellini, que muitas vezes foi interpretado como uma adaptação do romance “Amerika” de Kafka, publicado em 1927. No entanto, o cineasta italiano estava de fato nos Estúdios Cinecitta, em Roma, preparando-se para adaptar a obra literária de Kafka, apenas para transformar o filme em uma mistura surreal de documentário, autobiografia e um filme dentro de um filme.
Adaptações e Influências
Outro título da retrospectiva, “L’Udienza” (A Audiência), um filme de 1971 do diretor Marco Ferreri, originou-se como uma adaptação do romance de Kafka de 1926, “O Castelo”. Isso até que o diretor italiano percebeu que teria que pagar para adaptar o clássico romance. “Ele [Ferreri] acreditava que não havia detentores de direitos”, conta Esposito, o que levou à mudança da trama do filme para a história de um jovem com a ideia louca de ir a Roma para se encontrar com o Papa.
Influência de David Lynch
Em outro exemplo de “baseado em” se tornando “inspirado por”, Esposito lembrou que David Lynch certa vez transformou a novela “A Metamorfose” de Kafka em um roteiro, apenas para decidir não fazer o filme “porque ele disse que o livro era bom demais para ser transformado em filme.” Mas o respeito de Lynch pela obra literária de Kafka se estendeu à icônica série de TV “Twin Peaks”, incluindo uma cena ambientada no escritório do diretor do FBI Gordon Cole, interpretado pelo co-criador da série Lynch, onde um retrato de Kafka é claramente visto emoldurado e colocado na parede.
Aniversário de 100 Anos da Morte de Kafka
A retrospectiva de Karlovy Vary é programada para o 100º aniversário da morte de Kafka em junho de 1924. Soderbergh estará em Karlovy Vary para apresentar suas duas versões de “Kafka”, diz Och: “Duas edições diferentes do mesmo material filmado em Praga no início dos anos 1990.”
Se não fosse por seu amigo Max Brod, que desafiou o pedido de Kafka em seu leito de morte para queimar suas obras literárias, o mundo não teria conhecido grandes escritos como “O Processo”, “O Castelo” e a história curta “A Metamorfose”, como material fonte para filmes. Och argumenta que as obras literárias de Kafka e os filmes que elas inspiraram entre 1954 e 2017 falam muito sobre nossos próprios tempos turbulentos.
Kafka: Um Escritor Atemporal
“Se você pensar no estilo de escrita de Franz Kafka, e na maneira como ele retrata o relacionamento entre as pessoas e a forma como ele percebia a realidade ao seu redor e através de sua escrita, é atemporal”, diz ele. “Mas parece muito preciso em comparação com nossos tempos por causa da confusão e do fato de que os tempos parecem ser um pouco mais agressivos do que costumavam ser. Kafka era muito sensível, e se você é sensível hoje em dia, sua sensibilidade é atacada de muitos lugares e elementos. Então, é meio violento, e o fato de que ele lidou com isso através de suas palavras é fascinante e muito, muito moderno.”
Esposito acrescenta: “[Kafka] simplesmente fala sobre algo que nos afeta diariamente, sobre felicidade e infelicidade e todos podemos entender isso, especialmente nos dias de hoje, durante esses dias muito violentos e trágicos que estamos vivendo, com guerras e muitas mortes.”